quinta-feira, 12 de junho de 2008

Movimento Segurança Cidadã - Boletim nº III

Ano I – nº. 3, 12 de junho de 2008

Uma nova Polícia, feita por Policiais Cidadãos.

OS BASTIDORES DA SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO


EDITORIAL

ESCÂNDALO NACIONAL! VERGONHA INTERNACIONAL!


Discurso da Deputada Cidinha Campos:

Senhor Presidente,

Senhoras e Senhores Deputados,

o que eu tenho a dizer não é tão grande que eu não pudesse usar um aparte para fazê-lo, mas eu achei que seria tirar o tempo do debate que está se ouvindo aqui, porque tem sido muito bonito.

E eu quero cumprimentar o Deputado Paulo Ramo - não é sempre que eu faço isso, não é, deputado? - pelo seu discurso desta tribuna.

Falou-se muito aqui, Senhor Presidente, sobre estado de direito. Acho que do estado de direito já se falou demais. Nós temos que falar do Estado direito. O Estado direito é aquele em que o deputado trabalha, vive com o seu salário, não rouba de ninguém, não tira dinheiro da escola de criança. Esse é o Estado direito!

Não vou fazer nenhuma análise jurídica. Eu vejo com espanto que na hora de defender um deputado, vão procurar na Constituição o amparo para livrá-lo de uma punição. Mas esse deputado que foi Chefe da Polícia deste Estado do Rio, não respeitou nem o Código Penal, nem o Código Civil. Nada! Na hora de se defender, todos buscam a legalidade ideal: a Constituição Federal que ninguém respeita.

Esta Casa, é claro, tem competência para tirá-lo do xadrez, mas não tem legitimidade. Sabe por que, Senhor Presidente?

Porque 40% desta Casa estão envolvidos com a marginalidade: 40% de uma casa política envolvida com bolsa-escola, máfia dos combustíveis, assassinato, grupo de extermínio, extorsão, milícia e tráfico.

Que legitimidade tem esta Casa para dizer que ele tem que sair da prisão? Estão votando em causa própria! “É ele hoje, sou eu amanhã” – como já disseram aqui uma vez.

Então, qualquer que seja esse resultado e eu já sei qual será como sabia que ele ia ser preso – e V. Exa. é testemunha que eu sabia que ele ia ser preso - como sei que outros serão. Serão presos e nós nos vamos enfraquecendo a cada passo.

As argolas que querem tirar do pé do Álvaro Lins já estão chegando aos nossos pés, porque nós estamos implantando no Poder Legislativo do Estado do Rio de Janeiro o poder da bandidagem, da falcatrua, da falta de respeito à população e ao direito do Estado, ao Estado direito.

Senhor Presidente, eu trouxe documentos aqui. Tem gravação. Eu tenho a degravação completa da investigação da Poeira no Asfalto. O chefe do gabinete do Dr. Álvaro Lins tratando da falcatrua que ia fazer naquele direito especial do imposto do ICMS que o Garotinho ia botar.

Ele não está sendo julgado por isso, mas também será e nós vamos perder o bonde da história, porque ele é o principal envolvido na máfia dos combustíveis. Mas como é que vai votar esta Casa? Dos oito presos, um é funcionário daqui. A mulher do Sr. Álvaro Lins, a ex, é funcionária da Casa, e os outros, os demais, todos foram homenageados pela Casa, todos os bandidos receberam moção desta Casa, alguns receberam três ou quatro. Mas que moral tem um Deputado que dá moção para esses bandidos? E eu não estou nem falando do Álvaro Lins que recebeu a Medalha Tiradentes e outras coisas. Estou falando dos “inhos” todos. Bandidos pés-de-chinelo que receberam moção, medalha de diversos Deputados, a maioria de Deputados também envolvidos em outras denúncias de corrupção.

Eu acho, Senhor Presidente que é um discurso perdido. Quando a gente se opõe ao sistema, porque isso virou um sistema, chega a ser perda de tempo. Mas o que estou fazendo aqui se eu não fico pelo menos indignada com o que está acontecendo? Então, eu sei que ele vai sair por aquela porta, vai usar os instrumentos que tem, como disse bem o Senhor Deputado Paulo Ramos, como ex-Secretário de Segurança Pública, para desvirtuar a investigação. E não é só ele, são dois ex-Secretários, ele e o Ricardo Hallack, que é outro bandido de primeira classe muito homenageado nesta Casa.

É um discurso vazio. É um discurso que não vai dar em nada.
Pode sair, Senhor Deputado Álvaro Lins! A Casa é sua!

1º ARTIGO

A qualificação necessária para lavratura do Termo Circunstanciado


Marcello Martinez Hipólito (*)

Com a entrada em vigor da Lei 9.099/95 algumas Polícias Militares, dentre elas as do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e São Paulo, mais recentemente Alagoas, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Goiás, começaram a lavrar o Termo Circunstanciado no local dos fatos e pelo policial militar que atendesse ao chamado da população, seja ele Oficial, Sargento, Cabo ou Soldado, isto com fundamento no artigo 69 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais.

Não foram poucas as vozes que se insurgiram contra a nova dinâmica de trabalho adotada pelos citados Estados em suas Polícias Militares, que impuseram ao seu trabalho agilidade, economia, eficiência e eficácia na prestação jurisdicional ante as infrações penais de menos potencial ofensivo.

Dentre os vários argumentos suscitados, em sua maioria por Delegados de Polícia, vou me restringir a apenas um neste pequeno ensaio, que é o argumento de que a lavratura do Termo Circunstanciado, que implica na qualificação jurídica de um fato abstratamente configurado como crime ou contravenção, é tarefa que exige a presença de um profissional com formação jurídica, qual seja, o Delegado de Polícia.

Necessário antes esclarecer que se desconhece polícia no mundo que para o exercício da polícia judiciária seja necessário o bacharelado em Direito, talvez por isso é que a Constituição Federal não exija o curso de direito para Delegados de Polícia, tal como o fazem para os Magistrados, art. 93, I, e membros do Ministério Público, art. 129, § 3º.

Também não há no ordenamento jurídico nacional lei que discipline quais são os chamados atos de polícia judiciária ou mesmo quando deve se encerrar a atuação da polícia ostensiva, devendo esta encaminhar os fatos e as pessoas para aquela, ou mesmo se é necessário tal procedimento.

Para alguns juristas na competência constitucional das Polícias Militares para a preservação da ordem pública, art. 144, § 5º, da CF, estariam incluídos todos os procedimentos necessários para a restauração da ordem pública no caso de sua quebra, tais como a prisão em flagrante e sua lavratura, representação para a prisão preventiva, pedido de busca e apreensão, interceptação telefônica, etc., tal como ocorre em todas as polícias no mundo, no denominado 'ciclo completo de polícia'.

Ocorre que para a prisão de alguém que esteja em flagrante delito o art. 301 do Código de Processual Penal faculta a 'qualquer do povo' a realização do ato, sem que para isso exija o bacharelado em direito. A disposição de facultar a qualquer do povo a execução da prisão em flagrante não tem sido questionada pela doutrina ou jurisprudência.

Para exercer a faculdade do art. 301 do CPP o 'qualquer do povo' deverá fazer um cotejo preliminar entre a conduta verificada e a norma abstratamente prevista nas Leis Penais, sem a qual sua ação será abusiva e passível de sanção penal, seja ele agente público ou não.

Já essa mesma capacidade de avaliação é exigida do policial militar que é chamado para atender a uma infração penal de menor potencial ofensivo e lavra o Termo Circunstanciado, após o compromisso do autor do fato de comparecer ao Juizado Especial Criminal, porém, mais qualificada, em razão de curso de formação que fez quando do ingresso na instituição.

Quando o policial militar lavra o Termo Circunstanciado, contra o autor dos fatos após o compromisso por ele assumido, deixa ele de exercer a faculdade de “qualquer do povo” e sua obrigação de prisão em flagrante prevista no art. 301 do CPP, por expressa disposição do parágrafo único do art. 69 da Lei 9.099/95.


Caso o autor do fato se recuse a assumir o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal aí deverá entrar em cena uma autoridade policial mais qualificada, que na prática do direito brasileiro, via de regra, é o Delegado de Polícia, para a formalização da prisão em flagrante de crimes comuns.

Não se admitindo que o policial militar lavre o Termo Circunstanciado no local dos fatos o agente fatalmente será muitas vezes algemado e conduzido coercitivamente até um Delegado de Polícia, naquelas poucas que dispõe de um de plantão, e a verificação posterior do erro quanto à existência da infração penal impõe ao autor do fato um constrangimento de difícil reparação.

Do contrário, caso um policial militar erre na qualificação jurídica do fato tido por infração penal ao elaborar o Termo Circunstanciado – qualificação esta não exigida na Lei – será ele prontamente corrigido pelo Promotor de Justiça quando do recebimento da notícia-crime ou mesmo pelo Magistrado por ocasião da audiência preliminar.

As duas situações aventadas denotam significativas diferenças de atuação policial, sendo muito mais humana, menos constrangedora, mais adequada aos princípios da Lei que impede a prisão em flagrante daquele que sequer será condenado a uma pena privativa de liberdade pelo fato praticado, por sua menor potencialidade.
Aos argumentos até então dissertados soma-se o fato de o artigo 69 utilizar-se do verbo 'lavrar', ação esta afeta ao escrivão, a teor do art. 305 do CPP, que atribui ao escrivão a lavratura do auto de prisão em flagrante.

Assim sendo, qualquer policial militar, ou mesmo policial civil ou federal, pode lavrar o Termo Circunstanciado, pois a lei não qualifica o procedimento como ato de polícia judiciária, não se exige formação jurídica para sua consecução e o ordenamento jurídico conduz a essa hermenêutica diante dos princípios norteadores da Lei 9.099/95, combinado com a própria legislação adjetiva penal.

(*) Capitão da Polícia Militar de Santa Catarina, Especialista em Direito Penal pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Professor de Direito Processual Penal na UNISUL e de Criminologia, Direito Penal e Processual Penal no Centro de Ensino da Polícia Militar de Santa Catarina.

E-mail: marcellomh@hotmail.com



2º ARTIGO


Raízes da Insegurança Pública no Rio de Janeiro.

Tenente - Coronel de Polícia

Antonio Carlos Carballo Blanco

Está em curso no Rio de Janeiro um processo de privatização da segurança pública. Trata-se, na verdade, do financiamento privado das atividades de segurança pública.

Ao longo das últimas décadas, a ausência de uma política inteligente e sólida de segurança pública tem provocado inúmeras distorções legais e morais que, via de regra, produz efeitos nocivos para a gestão do serviço policial.

As omissões e permissividades protagonizadas pelos sucessivos governos fluminenses, especificamente no que tange à temática da segurança pública, geraram nos últimos anos o incremento do processo de privatização desse bem público que é a segurança, em tese, considerado indivisível.

Não obstante, essa particular dinâmica de financiamento privado da segurança pública, vem produzindo efeitos perversos contrários às demandas e expectativas da sociedade, frutos do processo de acomodação e de apropriação particular do serviço público por parte de autoridades políticas do governo (de todos os poderes públicos constituídos), dos dirigentes das instituições policiais e dos servidores públicos que as compõem (hoje, muitos comandantes, oficiais e praças da polícia militar, delegados e inspetores da polícia civil, todos no serviço ativo, administram serviços de segurança privada).

O serviço policial, por sua natureza e característica intrínseca, requer do profissional de segurança pública dedicação integral ao serviço, não podendo exercer nenhuma outra atividade, salvo aquelas expressamente autorizadas por força de Lei.

Por mais paradoxal que possa parecer essa norma vem sendo violada e descumprida sistematicamente, inclusive com a cumplicidade, complacência e irresponsabilidade do Poder Público que muita das vezes gera artífices da facilidade para viabilizar ao policial uma folga mais dilatada para que o mesmo possa através de outras atividades laborais complementar sua renda.

Aparentemente inofensivo e motivado até por razões nobres (decorrentes do processo de alienação imposto aos policiais pelo Poder Público em relação às condições salariais e de trabalho), o famigerado “bico” representa dos maiores problemas a serem enfrentados no campo da segurança pública.

Nesse contexto, podemos afirmar que atualmente o medo e a insegurança pública, sejam eles tratados de forma objetiva ou subjetiva, constitui valor de mercado e moeda de troca para ampliação do empreendimento na área da segurança privada e, em alguns casos, para a conformação de nefastos e inconfessáveis projetos de poder político. Em outras palavras, grosso modo: O Policial depende do medo e da insegurança pública da população para sobreviver.

É triste dizer, mas é justamente essa dualidade de valores e disputas veladas entre o bem indivisível (a segurança pública) e o bem divisível (a segurança privada), que faz com que o policial, conscientemente ou não, sujeito ou objeto da sua história, da história de sucesso ou de fracasso de sua instituição, aposte no medo e na insegurança pública como fator de garantia para expansão dos negócios privados.

Por outro lado, o aumento da carga extraordinária do trabalho policial, mediante o exercício ilegal e clandestino das atividades de segurança privada, longe de favorecer ao policial uma melhor qualidade de vida, cria os seguintes problemas para a segurança pública: 1) estresse, cansaço, fadiga física e mental, com grave comprometimento das funções fisiológicas e, conseqüentemente, sérias repercussões nas condições objetivas de segurança para a preservação da integridade física do policial, de seu companheiro de trabalho ou de qualquer outra pessoa; 2) ausência de mecanismos institucionais e de ferramentas gerenciais de controle de tais atividades clandestinas; 3) ausência de cobertura oficial do sistema de previdência; 4) subversão da hierarquia e da disciplina; 5) construção de uma cultura de privilégios na alocação de recursos destinados ao policiamento ostensivo; 6) venda de proteção em troca da contratação de serviços de segurança privada; 7) formação de “milícias”.

Nesse contexto, em face da possibilidade concreta e generalizada do exercício paralelo de atividades inerentes à segurança privada, sobrepõe-se a essa discussão uma outra, porém não menos importante, que questiona qual deve ser o posicionamento político do governo e o comportamento da corporação à luz da ética e da deontologia policial.

Nesse sentido, cabe o seguinte questionamento: No caso do policial da ativa, o exercício de atividades adstritas ao campo da segurança privada é eticamente compatível com o exercício de atividades no campo da segurança pública?

Um bom exemplo que pode servir de referência analógica em razão desse importante questionamento pode ser obtido através de uma análise detida das normas legais contidas na Lei nº. 8.906. de 04 de julho de 1994 (Estatuto da OAB) que prevê no inciso V do Ar. 28 que o exercício da advocacia é incompatível com as atividades exercidas por ocupantes de cargos ou funções vinculadas direta ou indiretamente à atividade policial de qualquer natureza.

Portanto, seria muito importante, conveniente e oportuno que o Poder Público considerasse o exercício da segurança pública incompatível com a atividade da segurança privada. É necessário, pois, romper com essa lógica perversa de privatização, sustentada no âmbito de um projeto de poder não declarado, para que tenhamos uma política pública de segurança objetiva e consistente.

Compete então ao governo do estado do Rio de Janeiro abraçar a tarefa de construir uma nova Polícia, formada por policiais cidadãos, bem remunerados, capacitados e motivados para o exercício de sua missão precípua de proteger e servir à população fluminense.






terça-feira, 10 de junho de 2008

Movimento Segurança Cidadã - Boletim nº II


Ano I – nº. 2, 12 de maio de 2008

Uma nova Polícia, feita por Policiais Cidadãos.

OS BASTIDORES DA SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO


EDITORIAL


Entre os anos de 1955 e 1975, período de maior desenvolvimento industrial na história do Brasil, a sociedade brasileira passou por um processo transformação raramente visto nas sociedades contemporâneas. Em apenas vinte anos, o Brasil passou da condição de sociedade rural, sedimentada em bases agrárias para se tornar um modelo de sociedade urbana, sedimentada em bases industriais.

No final da década de sessenta e início da década de setenta, por exemplo, o boom da construção civil, contribuiu sobremaneira para a ocorrência de altas taxas de migração do campo para a cidade. Nesse período a população do campo migrava para as grandes metrópoles, dentre elas o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida.


Todavia as grandes cidades não estavam preparadas para absorver essa mão de obra. As condições de infra – estrutura e serviços eram extremamente precárias. Esse processo migratório permaneceu ativo e perdurou até a década de oitenta, o que concorreu, direta e indiretamente, para o crescimento desestruturado das cidades.

As sucessivas demonstrações de omissão e permissividade do Poder Público promoveram a ocupação irregular do solo urbano e a inadequada e insuficiente provisão de serviços públicos essenciais em face do aumento da demanda. Enfim, desde aquela época até os dias de hoje vive-se um verdadeiro caos urbano.

É nesse cenário conflituoso que os conglomerados urbanos ou favelas se expandiram. As favelas são ambientes geográficos informais, situados topograficamente nos morros da cidade, o que impede um controle periférico da criminalidade.

Marcadas pela ausência total ou parcial do Estado, os moradores das comunidades populares do Estado do Rio de Janeiro constituem o principal grupo de vítimas da violência e da criminalidade. As favelas se tornaram locais ideais para a prática criminosa e para o homizio de marginais da Lei, sobretudo àquelas práticas associadas à dinâmica do tráfico de drogas associado ao contrabando de armas.

Por outro lado, ao longo das últimas décadas, acima referenciadas, as organizações policiais não prepararam adequadamente para enfrentar o futuro. Em 1964, no âmbito da segurança pública, ocorreu uma grande mudança conceitual. O foco deixou de ser a segurança do cidadão e passou a ser a segurança do Estado. O inimigo interno passou a ser o principal alvo das organizações policiais.

O ideário da doutrina de segurança nacional transformou as polícias militares em forças policiais – militares ordinárias de segurança pública com responsabilidade exclusiva pela ação de polícia ostensiva e de manutenção da ordem pública.

Nesse contexto, prevaleceu o modelo de organização policial baseado no paradigma militarista onde a idéia de serviço estava necessariamente subordinada à idéia de força. Esse processo de militarização da segurança pública ensejou uma série de conseqüências para a administração do serviço policial.

É conveniente destacar que não foi o modelo de estrutura organizacional herdado do exército, baseado em princípios sólidos de hierarquia e disciplina que viciou esse processo, mas sim a ideologização do modelo aplicado a uma dinâmica de prestação de serviços de segurança pública que desvirtuou a finalidade e os objetivos institucionais básicos que devem nortear o bom funcionamento uma organização policial.

Grosso modo, enquanto as favelas se expandiam e o crime organizado tomava corpo e forma, as organizações policiais centravam seus esforços no estouro de aparelhos subversivos e na repressão às manifestações populares pró – democracia. O foco estava concentrado no inimigo interno e não na administração policial da ordem pública com vistas a uma efetiva prestação de serviços de segurança pública objetivando a melhoria da qualidade de vida da população.

Outro ponto de destaque refere-se ao modelo de administração adotado pela Corporação, extremamente fechado, partilhado e mecanicista, totalmente avesso ao relacionamento institucional participativo e frontalmente incompatível com a dinâmica imposta pelo ambiente nos diferentes processos de interação que são exigidos no âmbito dos serviços policiais.

Um claro exemplo dessa triste realidade pode ser buscado na própria dinâmica da criminalidade: enquanto nas organizações criminosas as atividades são organizadas através de redes ágeis, nas organizações policiais persiste o velho esquema de organização baseado no modelo piramidal, fechado em si mesmo, desconectado das instituições afins e do próprio ambiente, interno e externo.

As sociedades contemporâneas que apresentam expressivos indicadores e taxas de violência e de criminalidade são, via de regra, marcadas por um acentuado nível de desigualdade social e falta de acesso à justiça. Aliado a esse fator, as sociedades contemporâneas cultuam o consumismo, em todos seus aspectos, dimensões e manifestações, como valor social de primeira grandeza. Nesse contexto, é comum observar uma forte contradição entre os valores tradicionais e os valores da modernidade.

Essa realidade, principalmente nos países subdesenvolvidos como o Brasil, determina o marco etiológico que caracteriza o agravamento do processo de exclusão social.

Entre 1980 e 2002, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, ocorreu um aumento de 85% na taxa de homicídios atingindo um valor de 60 por 100 mil habitantes. Como principal conseqüência dessa dinâmica assistimos inertes ao extermínio de nossa juventude. Crianças desprovidas de um mínimo de estrutura familiar são facilmente cooptadas para as atividades criminosas. Ganham visibilidade perante o mundo portando armas de alto poder bélico.

Nesse sentido, a violência e a criminalidade no Brasil associada à dinâmica do tráfico de drogas tem território específico, idade, sexo e cor. Ocorre nas favelas, nos conglomerados urbanos e na periferia desses espaços geográficos, seus principais algozes e vítimas são jovens do sexo masculino, com idade compreendida entre 13 e 24 anos, na sua maioria negros.

Um estudo recente do Banco Mundial (2006) estima que uma redução de 10% na taxa de homicídios no Brasil poderia contribuir com uma elevação entre 0,2 e 0,8 pontos percentuais ao ano da taxa de crescimento de renda per capita ao longo dos próximos cinco anos.


1º ARTIGO

A democratização da lavratura do termo circunstanciado e seus reflexos à segurança pública.



Major de Polícia
Wanderby Braga de Medeiros


O termo circunstanciado, instrumento introduzido no ordenamento legal pátrio a partir da lei processual n.º 9099/95, trouxe importantes inovações, rompendo a lógica da tradição inquisitorial brasileira, da qual deriva o anacrônico e ineficaz inquérito policial, provendo não apenas maior celeridade à prestação jurisdicional, como também a busca de mecanismos alternativos preliminares à mera imposição de pena, fundados menos na necessidade de reprimenda estatal, de que na satisfação das partes envolvidas.

Aplicável às contravenções penais e aos crimes cujas penas máximas não sejam maiores de que dois anos, o termo circunstanciado, preso à lógica da celeridade, economia processual, informalidade e oralidade, representa mero relato da conduta em tese delituosa, com menção às partes envolvidas e eventuais materiais apreendidos e perícias solicitadas.

A discussão acerca da alegada (pelos próprios) competência exclusiva de delegados de polícia para a lavratura do termo circunstanciado já foi mais de uma vez espancada em plenário do Supremo Tribunal Federal, culminando com o julgamento da ADI n.º 2862, em 26/03/08.

A democratização da lavratura do termo, recaindo tal competência sobre qualquer agente público investido de autoridade policial, mais de que uma tendência nacional, representa necessidade premente para que a letra da lei não se afigure como "morta" e que os objetivos colimados em seu texto prevaleçam sobre meros e repudiáveis interesses classistas de concentração de poder e mantença de statu quo.

Assim sendo, diante de infrações de menor potencial ofensivo, deve sim a autoridade pública, seja ela qual for (desde que esteja investida de poder de polícia) lavrar o termo e encaminhar o feito diretamente ao poder judiciário, já assinalando data, hora e local para a realização da audiência preliminar.

A democratização da lavratura do termo circunstanciado tende a gerar, dentre outros, os efeitos seguintes, todos, tendentes ao interesse maior, ao interesse público:

Intensificação da presença da polícia nas ruas.
A maioria absoluta das mediações de conflito delituosos com que se depara a polícia é de menor potencial ofensivo. Com a lavratura do termo pelo policial responsável pela ocorrência no próprio logradouro público, deixa de ocorrer o deslocamento e o consumo de horas em delegacias de polícia.

Economia de recursos públicos.
Conseqüência necessária do primeiro efeito, tanto sob a perspectiva homem-hora, quanto do ponto de vista de economia de recursos materiais, e.g., combustível e outros insumos ao patrulhamento motorizado.

Incremento de qualidade no atendimento.
Decorrente da desobrigação de submissão de autores, testemunhas e vítimas a penosos e deslocamentos, bem como ao consumo de horas para a adoção de desnecessários feitos cartorários, merecendo menção ainda a quebra do ciclo de vitimização secundário, decorrente da repetição de narrativas e feitos.

Redução da sensação de impunidade.
Com a celerização da prestação jurisdicional, tendo como marco inicial a pronta e completa atuação da autoridade policial chamada à mediação (seja ela qual for), a sensação de que de nada adianta chamar a polícia tende a sofrer importante golpe, decorrente de resposta mais satisfatória e técnica a ser emanada.

Redução da impunidade objetiva.
Efeito decorrente não apenas do ponto de vista das infrações de menor potencial ofensivo, celeremente carreadas ao poder judiciário, como também dos delitos não enquadrados em tal rol (homicídios dolosos, furtos, roubos, etc), uma vez que a polícia investigativa, liberta do pesado e desnecessário encargo cartorário de intermediar a remessa dos termos circunstanciados ao poder judiciário, passa a ter espaço para otimizar a aplicação de seus recursos humanos e materiais com vistas ao seu mister constitucional de investigar e elucidar tais delitos.

Incremento de credibilidade no aparato policial.
Ponto que emerge do somatório das virtudes já mencionadas e que tende a produzir reflexos positivos também sobre os próprios policiais mediadores dos conflitos, eis que o resultado de sua completa atuação passa a ser algo mais palpável, produzindo reflexos imediatos e materiais.

Diferentemente do que ainda ocorre no RJ, onde a máxima de que "toda ocorrência termina na DP" impera e que até "elementos suspeitos" são conduzidos às circunscricionais para verificação de antecedentes, há diversos estados em que concepção cidadã de atendimento policial já prospera, representada não apenas pela lavratura de termos circunstanciados por quaisquer autoridades investidas de poder de polícia (policiais militares, rodoviários, civis, etc), como pela carreação às delegacias de polícia apenas das situações de flagrância delitiva de maior potencial ofensivo.

Coincidência ou não (creio que não), tais estados têm experimentado resultados pródigos em matéria de redução de ilícitos, tanto de maior, quanto de menor potencial ofensivo.

Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo que o digam!



2º ARTIGO

A PERVERSIDADE DO “BICO” E A PRIVATIZAÇÃO DA SEGURANÇA


Coronel de Polícia
Ronaldo Antonio de Menezes


As falácias costumam permear a vida pública. Infelizmente, nestas terras tupiniquins, nossos governantes, em sua grande maioria, criaram o hábito de usar discursos cujos conteúdos têm por objetivo mascarar uma deficiência e oferecer, instantaneamente, uma satisfação à população, mesmo que seja um paliativo, ou mesmo um placebo, pois a resposta correta nem sempre é fácil e exige, invariavelmente, esforço sério e contínuo, que somente pode ser despendido por administrações austeras, compromissadas com a causa pública e avessa aos projetos e interesses pessoais.

Veicula-se mais um concurso para ingresso nos quadros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, como sempre é feito quando fatos perturbadores ou números indicam a falência da segurança pública no nosso Estado.

Pode-se até dizer que esse quadro foi herdado, contudo, ao observarmos com bastante cuidado, veremos que a maneira de conduzir a pasta é a mesma, tanto nessa quanto em outras administrações.

Política de Segurança Pública não pode se sustentar apenas em aumento de efetivo, aquisição de viaturas, armamento e equipamento, já que a realidade vem demonstrando que simplesmente “botar o bloco na rua” não vem contribuindo para a redução da criminalidade ou o aumento dos delitos solucionados.

Por sua vez, a melhoria do policiamento ostensivo, atribuição da Polícia Militar, decerto não passa pela admissão sem critério, normalmente produzida, pois se fosse esse o caso, ao invés da promoção do inchaço da máquina pública, seria observado o retorno das centenas de policiais militares cedidos aos mais diversos órgãos públicos.


Dados disponibilizados pela Própria Polícia Militar dão conta que cerca de 2.300 (dois mil e trezentos) policiais – militares estão fora das ruas, à disposição, por exemplo, da Secretaria de Governo, de Assistência Social, de Agricultura, de Ciência e Tecnologia, de Habitação, de Meio Ambiente e de Transporte, também circulam pelos gabinetes de Tribunais, do Ministério Público e de muitas Prefeituras, assim como zelam pela segurança dos presídios, fazendo o papel que deveria ser desempenhado por agentes penitenciários.

Então, cabe aqui perguntar: Por que um profissional preparado para preservar a ordem pública e executar a polícia ostensiva está destacado no DETRAN? No DETRO? Na Secretaria de Agricultura? Nas diversas Prefeituras? Em alguns casos explica-se, pois é uma mão de obra barata e auxilia no aumento de arrecadação. Mas a que preço?

O homem retirado das ruas, além de contribuir para a deficiência do policiamento, sobrecarrega aqueles que permaneceram na Instituição, ainda a oferecer sua vida em prol da população fluminense, ao mesmo tempo, tira deles as condições de garantir um serviço satisfatório ao povo, decorrendo daí, talvez, sua remuneração muito abaixo das expectativas e a segunda pior em nível nacional.

A Ordem Pública que é essencial à sociedade, envolve altos custos financeiros, derivados dos gastos com pessoal, equipamento e instalações, procedem então à necessidade de ser observado um emprego coerente e criterioso dos recursos públicos, priorizando as ações e operações policiais, não atividades acessórias ou sem vínculo com as atividades de segurança pública.

A falta de investimento na profissionalização do Policial tem uma ação perversa em desfavor do agente de segurança pública e da sociedade em geral, pois, ao sentir-se desvalorizado, seja financeira, institucional ou moralmente, e descobrir que, executando atividades paralelas, obterá melhor remuneração, o homem perde o vínculo com o público e prioriza o privado.


Por anos a fio ignoramos o que acontecia nos guetos e nas comunidades carentes, a simples percepção desses segmentos incomodava a vista e afligia a alma; para evitar essa realidade a classe mais abastada da sociedade refugiou-se em condomínios cercados por altos muros, providos de cercas elétricas e câmeras de segurança; para certificar-se que não teriam a santa paz de seus lares ameaçada, contrataram pessoas para controlar o acesso às dependências condominiais e afastarem pessoas indesejadas; pensaram eles então que seria interessante que esses homens trabalhassem armados e, em caso de necessidade, tivessem um bom entrosamento com as forças policiais, portanto, nada melhor que contratarem policiais para ali atuarem nas horas de folga, pois se serviriam do Estado e custavam quase nada.

Isso foi bom para ambos os lados, as pessoas tinham seu rico patrimônio protegido e os agentes da lei garantiam um reforço financeiro em seus orçamentos. Logo a classe média e os comerciantes perceberam que também podiam melhorar suas condições de segurança e contrataram vigilantes para circularem pelas ruas, nada mais eram que policiais e bombeiros, com as indefectíveis camisas pretas com a inscrição “apoio” às costas, a passarem as horas de sua folga em pé, sob uma marquise a respirar o dióxido de carbono expelido pelos veículos que passam incessantemente a sua frente.

A partir de então, mais um ator desse processo viu-se satisfeito, pois, como os agentes possuíam duas fontes de pagamento, a administração pública entendeu que não era mais necessário pensar em uma remuneração condigna ou condições de trabalho, bastava fechar os olhos e institucionalizar oficiosamente o “bico”.

O filão mostrou-se muito mais generoso do que se podia supor e isso atraiu os olhares de Oficiais e demais Autoridades Policiais, foram sendo montadas as firmas de segurança patrimonial, cujos escritórios funcionavam no interior dos aquartelamentos e delegacias e a mão de obra utilizada era abundante e com disponibilidade imediata. Boates, bares, bingos, comércios e congêneres se viram muito mais interessados em contratar uma segurança feita por policiais, que podiam agir ou se omitir como força pública quando necessário.


O quadro parecia que estava pronto, o “bico” tornou-se a atividade principal e o serviço público virou uma atividade complementar, cujo principal atrativo era conferir o direito à identidade e arma de fogo. O patrão deixou de ser a população e passou a ser o “Dono da Segurança”, o interesse deixou de ser a coisa pública e passou a ser o privado.

O policial passou a trabalhar completamente extenuado, físico e emocionalmente, uma vez que a jornada dupla consumia-lhe as forças; este homem, armado e com a incumbência de proteger a sociedade, tornou-se uma ameaça em potencial ao partir para as ruas, insatisfeito com o salário baixo e o descaso com que é tratado, portanto, propenso a praticas arbitrárias e acidentes que podem vitimar tanto a si quanto àqueles que devia proteger.

Eis que os menos favorecidos, imprensados entre a necessidade e a violência que geralmente impera nos locais onde residem, passam a receber segurança de grupos armados, coordenados (supostamente) por policiais, que afastam o tráfico de entorpecentes, inibem a pratica de roubos e furtos e tornam as ruas mais tranqüilas, entretanto, tudo tem um preço, e logo o transporte irregular de passageiros e a exploração de sinais clandestinos de TV fechada passa a ser controlado por esses grupos; em seguida, os cidadãos são compelidos a contribuir pela segurança prestada e pessoas da comunidade são recrutadas e armadas. Formaram-se as milícias.

Toda essa prestação de serviço que substitui o papel estatal, seja no atendimento ao topo ou à base da pirâmide social, deixa bem clara a privatização do sistema de segurança pública e uma perigosa inversão de valores; ao passo que o Estado declina de sua competência para utilizar o poder de polícia em prol da população e entrega essa tarefa a grupos paramilitares, permite instalação de um governo paralelo, com regras próprias e invariavelmente totalitárias, que tende a crescer à proporção da omissão governamental e da carência social.

No final, quando esses grupos estiverem enraizados em nosso contexto social e percebermos que deles não nos favorecemos, muito pelo contrário, que na verdade somos reféns de sua atuação e estamos aqui para servi-los com nossa “contribuição” obrigatória; que nossos protetores são também nossos algozes; que somos aldeões prontos a ceder a primeira noite aos Senhores Feudais, que nossos direitos começam e terminam segundo o interesse de nossos defensores e suas conveniências, talvez aí, somente nesse instante, ouviremos do dirigente público, movido pelo mais profundo senso de dever, se pronunciar e afirmar que está chocado com essa situação e que, apesar de não ser fruto de sua administração, encetará todas as medidas necessárias para devolver o Rio de Janeiro ao povo fluminense e novamente democratizar a segurança pública; que para tal conta com seus aliados, os policiais, os quais, apesar de mal assistidos por anos a fio, saberão resistir às vicissitudes e compreender que o caos decorre de governos anteriores e que, tão logo a situação esteja equilibrada, terão suas mui justas reivindicações observadas com todo o carinho.

Será que já não ouvimos essa ladainha antes? Dá-me um nariz de palhaço, por favor!



3º ARTIGO


Rio de Janeiro: Política de Segurança ou Política de Guerra?

Tenente – Coronel de Polícia
Antonio Carlos Carballo Blanco

Desde o início da década de 80 do século passado, há aproximadamente 30 anos, o Brasil e, particularmente, o Rio de Janeiro sofre com a escalada desenfreada da violência e da criminalidade. Muito possivelmente, existem inúmeras causas, de todos os matizes, concorrentes e determinantes, para ajudar a explicar a eclosão desse fenômeno normalmente travestido através do binômio medo e insegurança.

Antes de avançar na questão suscitada pelo título que precede estas primeiras linhas, é muito importante, conveniente e oportuno destacar os seguintes esclarecimentos: infelizmente, não há, no Brasil, um sistema de segurança pública. A simples idéia de sistema de segurança pública pressupõe a existência de um objeto comum, suprapartidário, e de instituições minimamente organizadas, com padrões mínimos de qualidade e de interface com vistas ao compartilhamento de processos de interesse comum. Pressupõe também a existência de um modelo de organização, objetivo e consistente, entre todos os entes federativos, União, Estados e Municípios.

Em primeiro lugar, no Brasil, o tema segurança pública vem sendo tratado ao longo das últimas décadas de maneira inadequada. A omissão e a permissividade dos nossos governantes têm contribuído para que o tema não seja tratado como verdadeira questão de Estado, acima dos eventuais interesses partidários. Por outro lado, inexiste no âmbito dos entes federativos e de suas instituições de segurança uma linguagem comum, básica, capaz de uniformizar procedimentos e guiar planejamentos numa perspectiva de médio e longo prazo.

A existência de uma legislação anacrônica aliada a um sistema obsoleto de funções policiais bipartidas também concorre para a pouca ou quase nenhuma efetividade no funcionamento das instituições policiais. Nesse contexto, o caso do Rio de Janeiro é bastante emblemático por sua singularidade e ajuda a compreender um pouco do drama nosso de cada dia.

É possível afirmar, portanto, que há décadas não há no Brasil nem tampouco no Rio de Janeiro uma verdadeira política de segurança pública. O que existe na prática são surtos ou espasmos seletivos de contenção da violência armada perpetrado com o uso da própria violência estatal.

E o que isso significa no dia a dia do cidadão? Significa muita coisa, a saber: a incapacidade do Estado em prover de maneira democrática serviço de segurança pública para todos, durante as 24 horas do dia; significa que o Estado não valoriza o profissional de segurança pública, seja do ponto de vista salarial, seja do ponto de vista das condições objetivas de trabalho; significa que não existe política de segurança pública, posto, que não existe um sistema capaz de integrar os diversos níveis de prevenção entre os diversos entes; significa que não existe um protocolo do uso da força claro, objetivo e consistente, suficientemente capaz de tornar a repressão efetivamente qualificada; significa que as instituições movem-se por seus próprios interesses corporativos ou por interesses pessoais; significa, em suma, que o modelo atual está falido.

Muitos podem estar agora mesmo fazendo a seguinte pergunta: E a política de enfrentamento, tão alardeada pelo governo e pelos veículos de comunicação social? Infelizmente, devo dizer que enfrentamento não é nem nunca será uma política pública.

Pode ser uma estratégia, uma tática e até mesmo uma obrigação legal, mas, com certeza nunca será uma política, pois não define de forma ampla e substantiva o que dever ser feito para melhorar a segurança pública como um todo, em todos os seus níveis de abrangência e complexidade, da prevenção à repressão, do favelado ao morador da classe A. Resta-nos então convencionar o que está de fato ocorrendo no Rio de Janeiro.

Diante dos fatores históricos que contextualizam o embate entre policiais e traficantes homiziados nas favelas ao longo dos últimos anos, com incursões e ocupações territoriais episódicas, ousarei definir o que se sucede nas últimas décadas como tática operacional de contenção seguida do processo de financiamento privado da segurança pública, tema este que será tratado especificamente em outro artigo, oportunamente, de maneira mais aprofundada.

O Art. 144 da Constituição da República (CR) define segurança pública como sendo um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Independentemente do órgão de segurança pública incumbido dessa ou daquela missão não resta qualquer sombra de dúvida que preservar a ordem pública, bem assim preservar as condições objetivas para que cidadãos e cidadãs e respectivo patrimônio estejam são e salvos de qualquer perigo.

O que estamos assistindo nos últimos anos pode ser traduzido, grosso modo, como um verdadeiro genocídio de jovens e de policiais. As sucessivas e malogradas táticas operacionais de contenção não surtiram e não surtirão o efeito da pacificação. Pelo contrário, os procedimentos de conduta tática e até mesmo o emprego tático do armamento utilizado em determinadas situações estão em total desacordo com o que de melhor existe na técnica policial, indo inclusive de encontro ao preceito maior da CR, que é o de manter as pessoas e seus respectivos patrimônios a salvo de qualquer perigo.

Também compõe essa perversa equação a existência de uma cultura bélica no seio das organizações policiais que privilegia a idéia de força em detrimento da idéia de serviço e reforçam algumas das justificativas para os casos de desvio de conduta, violência arbitrária e abuso do poder, alimentadas constantemente pelo forte sentimento de impunidade em razão das ridículas taxas de elucidação de delitos.

Há muito tempo que as forças estaduais de segurança não conseguem dar conta da situação de grave perturbação da ordem pública que assola o Estado do Rio de Janeiro e, em particular, a Cidade do Rio de Janeiro. Por inépcia, omissão, permissividade e, principalmente, por vaidade das autoridades públicas, não houve até o presente momento nenhum gesto nobre em reconhecer a falência das instituições policiais do Rio de Janeiro e a sua incapacidade de lidar com a complexa dinâmica criminosa gerada a partir do tráfico de drogas ilícitas e do tráfico ilícito de armas. De fato nosso cobertor é muito curto.

Mas, então, o que fazer diante desse cenário desolador? Diria que a situação do Rio de Janeiro chegou a um ponto de tamanha gravidade que não resta alternativa senão a decretação do estado de defesa, uma medida democrática e legalmente amparada nos termos da CR. Não é mais possível tampar o sol com a peneira. Situações como a do Complexo do Alemão, da Rocinha, de Manguinhos e de outras comunidades populares, principalmente devido as distintas particulares, especialmente, o domínio territorial armado imposto por grupos de criminosos associados ao tráfico de drogas ilícitas com grave comprometimento da ordem pública configuram plenamente, nos termos da Seção I, Capítulo I, Título V da CR, a necessidade da defesa do Estado e das Instituições Democráticas.

Vislumbra-se, portanto, que de acordo com o Art. 136 da CR, o Presidente da República é o principal responsável pela decretação do estado de defesa, cuja fundamental condição objetiva está dada e devidamente enquadrada: Art. 136. O Presidente da República pode ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

Nesse processo de pacificação e restauração da ordem democrática em algumas das comunidades populares do Rio de Janeiro a presença das forças armadas é fundamental, tanto pela sua excelente capacidade de mobilização recursos, humanos e materiais, quanto pelo domínio técnico e nível de adestramento de todo o efetivo mobilizado. O conceito da operação deve estar focado no esforço de preservar vidas, desativar “minas humanas” prestes a explodir e desmobilizar civis armados, mormente recrutados para formar fileiras junto ao “exército do tráfico de drogas”.

A participação das forças armadas, com o indispensável suporte das unidades especiais da polícia militar, garantirá, mediante superioridade numérica, a presença efetiva da tropa do Estado em toda a extensão territorial considerada, neutralizando eventuais reações de modo a reduzir potencialmente a possibilidade de reações indesejáveis e de se produzir vítimas inocentes. É parte de uma política maior para o verdadeiro enfrentamento da insegurança pública.



Movimento Segurança Cidadã - Boletim nº I

Uma nova Polícia, feita por Policiais Cidadãos.

OS BASTIDORES DA SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO

Ano I – nº. 1, 15 de abril de 2008

Editorial

O Movimento Segurança Cidadã (MSC) é uma iniciativa promovida por um grupo de oficiais e praças da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), com a finalidade precípua de sensibilizar a população fluminense sobre a gravidade da situação da segurança pública em nosso estado. O MSC é, em última instância, um movimento em prol de um novo modelo de polícia, uma polícia cidadã feita por policiais cidadãos.

O MSC foi constituído a partir da união dos oficiais superiores que compõem o grupo dos Barbonos, grupo este composto exclusivamente por coronéis da Polícia Militar, dos oficiais e praças do grupo denominado Os 40 da Evaristo e dos oficiais e praças que apesar de não pertencerem a nenhum dos dois grupos, apóiam o conjunto das reivindicações defendidas pelos grupos referidos.

O MSC é um movimento essencialmente pautado pelos princípios da cidadania, como forma de expressão e reação da sociedade em face do recrudescimento da violência urbana, mormente caracterizada pela alta incidência de homicídios e roubos, situação esta agravada não só por fatores sociais, mas, principalmente, pelo crescimento da corrupção institucional, constantemente estimulada pelo sentimento generalizado de impunidade que permeia o tecido social como um todo.

Contudo, independentemente dos fatores externos que afetam diretamente a segurança pública, tais como a desestruturação familiar, o desemprego e a evasão escolar, dentre outros, o MSC não pretende permanecer de braços cruzados aguardando soluções mágicas para resolver essas graves questões.

Pretende-se sim, apresentar propostas, objetivas e consistentes, alternativas ao atual modelo de segurança pública, para mudar o quadro de medo e insegurança que assola o Brasil, o Estado do Rio de Janeiro como um todo e, em particular a Cidade do Rio de Janeiro.

O MSC, portanto, apresenta como objetivo superior viabilizar a efetivação de uma completa reforma institucional no atual modelo de segurança pública, com profundas mudanças estruturais no modo de organização e funcionamento das instituições encarregadas da segurança pública. Enfim, uma reforma que seja capaz de subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas substantivas nas áreas de justiça criminal e segurança pública.

Não obstante a necessidade de mudanças no texto constitucional para viabilizar a efetivação de uma completa reforma institucional no atual modelo de segurança pública, o MSC propõe, no âmbito da PMERJ, a persecução dos seguintes objetivos específicos que, sem qualquer sombra de dúvida produzirão impacto positivo na melhoria da qualidade de vida da nossa sofrida população:

1) A VALORIZAÇÃO DO POLICIAL MILITAR: é inconcebível que num Estado como o Rio de Janeiro, que possui a segunda maior arrecadação do país, o soldado policial militar receba a segunda pior remuneração, ou seja, um vencimento líquido que não ultrapassa R$ 900,00 (novecentos reais) por mês ou menos de R$ 30,00 (trinta reais) por dia. O policial militar é, de fato, o maior patrimônio da sociedade. Torna-se indispensável, então, valorizá-lo como cidadão pleno, e apóia-lo em todos os aspectos inerentes a sua atividade (ético, legal, moral, material etc.) recompensando-o justamente com uma remuneração digna, uma formação policial de qualidade e dotação de equipamentos adequados para que ele possa proteger e servir a sociedade com devoção e profissionalismo.

2) FORMAÇÃO E CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL: urge reformular toda a estrutura de ensino da Corporação. Nos dias de hoje torna-se fundamental estabelecer canais permanentes de interlocução e de parceria a Universidade, de modo a garantir excelência nos processos de formação e de capacitação profissional dos policiais militares. Não podemos mais aceitar passivamente o fato de que alunos dos cursos de formação ou policiais já formados que se encontram na condição de alunos nos diversos cursos de formação, aperfeiçoamento ou especialização sejam afetados por demandas intempestivas e injustificadas por aumento de efetivo. Não se justifica prejudicar a instrução a pretexto de aumentar o efetivo do policiamento ostensivo extraordinário ou até mesmo de acelerar a formatura de uma nova turma para colocar mais policiais na rua. O resultado dessas “políticas de mobilização de efetivo” é pífio e a combinação deles pode ser explosiva: policiais mal formados, mal preparados para o exercício do ofício, e população mal assistida, passível de se tornar vítimas em potencial dos erros profissionais.

3) MODERNIZAÇÃO E GESTÃO ORGANIZACIONAL: infelizmente, ao longo das últimas décadas as ações de combate à criminalidade, perpetradas pela PMERJ, têm se mostrado ineficientes. Tal realidade pode ser traduzida através de distintos indicadores de ineficiência dentre os quais podemos destacar o modelo policial brasileiro de funções bipartidas, a ideologização militar da segurança pública, a baixíssima taxa de elucidação de delitos, a reprodução sistemática de uma tática operacional de contenção reativa, a forte ingerência política na área da segurança pública, o elevado número de policiais desviados de função (à disposição de diversos órgãos e autoridades), a falta de confiança da população nas instituições policiais, a falta de incentivo e de comprometimento dos policiais com o serviço em razão dos baixíssimos soldos, o crescente comprometimento de policiais com atividades e práticas delituosas diversas. Por outro lado, o modelo de estrutura organizacional da Corporação peca pelo excesso de centralização administrativa, conferindo pouca autonomia aos operadores que estão atuando na ponta da linha. A prática da avaliação não é medida recorrente o que afeta diretamente qualquer possibilidade de se pensar a mudança e o desenvolvimento institucional, pois, só se muda àquilo que pode ser medido. Como não há indicadores de avaliação de desempenho funcional e institucional, objetivos e consistentes, as mudanças não ocorrem e o sistema não opera como deveria. Reproduzem-se então os velhos padrões e rotinas tradicionais de gerenciamento organizacional, extremamente pesada e que já não mais atendem as expectativas e demandas da Corporação e da sociedade.


1º ARTIGO

"Os Desafios da Reforma do Modelo Brasileiro de Segurança Pública"


Tenente – Coronel de Polícia
Antonio Carlos Carballo Blanco

Introdução

No próximo dia 05 de outubro, a Constituição da República (CR) completará vinte anos de vigência. De lá pra cá pouca coisa mudou no campo da segurança pública. Ainda persistem velhos problemas de natureza estrutural que, por omissão e permissividade dos distintos atores políticos, concorrem para agravar o quadro da segurança pública no Brasil.

O que se segue é tão somente uma reflexão preliminar sobre alguns dos principais desafios estruturais que se impõem para reformar o atual modelo de segurança pública. No bojo desses desafios perpassam alguns dilemas, contradições e paradoxos que interferem diretamente na prática policial cidadã de uma sociedade que se pretende reger sob a égide do Estado Social Democrático de Direito.

Nesse contexto, institutos como o foro privilegiado, a prisão especial e o inquérito policial, por exemplo, servem tão somente para gerar mais iniqüidades e desequilíbrios sociais, condicionantes estas essenciais para o agravamento da situação de injustiça social e de impunidade que tanto assola a sociedade brasileira.

No âmbito das instituições policiais, questões como a ideologização militar e bélica do serviço policial e o modelo de funções bipartidas são desafios de primeira magnitude que não podem ser adiados sob pena de falência múltipla dos poderes constituídos e das instituições democráticas.

Sobre a ideologização militar e bélica do serviço policial.

Não obstante o fato de haver previsão legal para a elaboração de uma nova legislação com vistas a disciplinar a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades, conforme se lê no § 7º do Art. 144 da CR, passado quase quarenta anos desde a edição do Ato Institucional nº. 5 (AI – 5), nada ou quase nada foi feito no sentido de reformar o atual modelo de segurança pública brasileiro, bem assim as instituições policiais que compõe esse “sistema”.

Ainda hoje, todo o arcabouço jurídico que regula a organização e o funcionamento das polícias militares, em especial o Decreto – Lei nº. 667, de 02 de julho de 1969, e o Decreto nº. 88.777, de 30 de setembro de 1983, é oriundo do AI – 5, por força do § 1º do Art. 2º, nos seguintes termos:

Ato Institucional nº. 5

Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.

Em que pese o fato do ato ter vigorado até 13 de dezembro de 1978 e dez anos mais tarde ter sido promulgada a nova constituição brasileira, a constituição democrática e cidadã, as derivações resultantes dos atos institucionais discricionários do regime militar ainda continuam a produzir seus efeitos.

Observa-se, pois, que toda a legislação que constitui o alicerce organizacional e a base cultural das organizações policiais militares foi forjada sob o ideário da doutrina da segurança nacional, da ordem e segurança internas e do inimigo subversivo.

Não há, portanto, no campo político, nenhum tipo de relação imediata ou nexo causal que delimite de forma clara, objetiva e consistente o alcance do mandato da atividade policial militar exclusivamente na área da segurança pública. O paradigma que prevalece é resultante da lógica militar e de uma cultura bélica de que a idéia de serviço deve necessariamente estar subordinada a uma idéia superior de força.

Não se trata aqui de desqualificar o modelo de administração baseado na estrutura militar, mas sim de destacar as implicações nefastas que o processo de ideologização militar e bélica do serviço policial pode acarretar para a segurança pública.

De certa forma, o próprio Decreto – Lei nº. 667 reforça esse apelo bélico ao definir, por exemplo, logo no seu Art. 1º, as polícias militares como forças auxiliares e reservas do exército como também ao incumbir a responsabilidade pelo controle e coordenação das Polícias Militares ao Ministério do Exército.

Decreto – Lei nº. 667

Art. 1º As Polícias Militares consideradas forças auxiliares, reserva do Exército, serão organizadas na conformidade deste Decreto-lei.

Parágrafo único. O Ministério do Exército exerce o controle e a coordenação das Polícias Militares, sucessivamente através dos seguintes órgãos, conforme se dispuser em regulamento:

Outras passagens constantes do Decreto – Lei nº. 667, bem assim do Decreto nº. 88.777, reforçam no plano simbólico, cultural, funcional e organizacional a ideologização militar e bélica do serviço policial que tanto caracteriza o paradigma militarista da segurança pública.

A função policial é essencialmente, por sua natureza intrínseca, considerada uma atividade discricionária. Nesse sentido o policial militar não pode estar nem tampouco ser constrangido a não exercer esse atributo profissional. A ideologia militar ou paradigma militarista vai de encontro a essa perspectiva funcional. Tolher a capacidade de o policial refletir criticamente sobre a sua realidade e a realidade de seu entorno significa, em última instância, reduzir as potencialidades cognitivas, instrumentais ou utilitários que o policial poderá despender no exercício de seu labor.

Também tem sua parcela de contribuição nesse processo de alienação e confusão mental para definição dos limites entre a lei e a ordem, o academicismo jurídico que é conduzido de maneira dogmática e desprovido de críticas.

Os efeitos desse antagonismo anacrônico, por mais paradoxal que pareça, geram comportamentos complacentes e irresponsáveis, pois, sob o mando militar, os fins podem justificar os meios enquanto que no mando policial é a lei, somente a lei, consentida e legitimada pela sociedade, é que pode justificar os meios. As contradições impostas por esse cenário e seus efeitos são percebidas diariamente na prática policial e no cotidiano urbano das grandes metrópoles.

Esses efeitos perversos, bastante retratados pelos veículos de comunicação social, tais como “bala perdida”, “grupos de extermínio” e “milícias” se constituem tão somente em função de diferentes interesses políticos e manifestações de parcela significativa da sociedade, com poder de formar opinião, que legitimam tais ilicitudes e práticas bélicas, apesar de serem totalmente incompatíveis com os próprios princípios e preceitos constitucionais que caracterizam o Estado de Direito.

Urge, portanto, no âmbito da União, nos termos do inciso XXI do Art. 22 da CR, iniciar o processo de transição democrática das instituições policiais, conforme previsto no § 7º do Art. 144 da CR.

Sobre o modelo de funções bipartidas.

A Constituição de 1988 consagrou o modelo de funções policiais bipartidas, ou seja, uma instituição policial (Polícia Militar) para exercer funções de polícia ostensiva e preservação da ordem pública e uma outra instituição (Polícia Civil) para investigar a autoria e a materialidade dos crimes e contravenções.

Tal modelo cria uma lacuna funcional decorrente do intervalo entre a prática do crime e a investigação policial. A existência de instituições policiais distintas envolvidas num mesmo processo concorre para aprofundar as dificuldades decorrentes, por exemplo, de um trabalho policial de investigação preliminar, da preservação do local de crime etc.

O mais curioso desse modelo é que em nenhuma outra instituição policial, especialmente dos países considerados civilizados adota essa bipartição. A regra comum é que haja diferenças de competências territoriais ou funcionais ou ambas, mas que se preserve o ciclo completo da atividade policial. Por que será que o Brasil insiste em adotar esse modelo em total descompasso com o que há de melhor no mundo em termos de Polícia?

Talvez a resposta esteja no próprio modelo de sociedade sobre que insistimos reproduzir. Uma sociedade de privilégios e prerrogativas, hierárquica e relacional, pautada pela apropriação patrimonial do espaço público como extensão preferencial dos interesses privados. Uma sociedade desigual por princípio e fim.

Fica fácil então de compreender o porquê de termos uma polícia de investigação que se esmera mais em conduzir burocraticamente os procedimentos cartoriais do que efetivamente realizar um trabalho de investigação científica tecnicamente orientada para a produção de provas. Infelizmente, as baixas taxas de elucidação de delitos comprovam essa triste realidade.





2º ARTIGO
A insegurança pública nossa de cada dia.


Coronel de Polícia
Paulo Ricardo Paúl.

O problema da insegurança pública vivenciado pela população fluminense é crônico, não surgiu da noite para o dia, foi sendo construído ao longo dos anos, ora pela omissão governamental, ora pelo estabelecimento de “políticas” equivocadas. As ilicitudes e as irregularidades se multiplicam nas ruas com uma velocidade inversamente proporcional à capacidade estatal de encontrar soluções para o problema.

O crescimento em escala geométrica do transporte alternativo clandestino, dos caça-níqueis e das milícias armadas, com as suas disputas de território, ceifando vidas, são alguns dos exemplos mais recentes. A criminalidade avança e a população recua, enquanto os governantes não conseguem estabelecer políticas públicas que permitam o controle desse quadro caótico de insegurança. O que nunca faltaram foram promessas políticas para solucionar o problema.

No campo acadêmico, incontáveis palestras, debates e seminários sobre o tema já foram realizados nessa cidade de natureza tão maravilhosa, onde as mais variadas propostas foram apresentadas e a criminalidade violenta continua crescendo.

Quem não ouviu falar no fantástico programa de “tolerância zero”, adotado na cidade de Nova Iorque e que teria diminuído drasticamente a criminalidade? Incontáveis vezes esse programa foi citado por estudiosos do tema, como uma verdadeira panacéia, a solução para todos os males decorrentes da atividade criminosa. A idéia é simples: reprimindo os pequenos delitos, evitamos a ocorrência dos grandes delitos.

O policiamento comunitário, importado dos Estados Unidos e do Canadá, que começou a ser implantado na gestão de Governo de Leonel Brizola, quando era Secretário de Estado de Polícia Militar e Comandante Geral o Coronel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, foi uma importante semente que até a presente data não deu frutos nem tampouco fincou as necessárias raízes. A propalada “Polícia Cidadã” nunca surge de fato.

Enquanto isso, as mazelas policiais são citadas a todo o momento: O número de policiais é insuficiente; os policiais são mal preparados; mal equipados; violentos; arbitrários; não respeitam os direitos humanos e ainda ganham muito mal, o que é uma verdade.

O problema da insegurança parece insolúvel e a conseqüência natural dessa situação foi o surgimento do medo generalizado na população, que muda os seus hábitos, na busca de uma menor exposição a esse flagelo social.

Nesse contexto, o cidadão fluminense, empiricamente, acaba adotando mecanismos de defesa, dentre eles, o hábito de não sair de casa à noite, privando a si mesmo da liberdade de ir e vir. O carro roubado no dia anterior, pertencente a um amigo ou a um vizinho, passou a ser uma conversa comum nos locais de trabalho.

A corrupção policial é decantada em cada roda de amigos. Em regra o narrador, o corrupto ativo, se vangloria de ter “comprado” por míseros trocados o policial, o corrupto passivo. E o medo cresce entre nós.

Tudo isso nos conduz à necessidade de uma dura escolha, que não pode mais ser adiada, sob pena do agravamento irremediável do problema: Ou a sociedade fluminense enfrenta verdadeiramente a busca de soluções para a insegurança pública ou seremos vítimas dela, mais cedo ou mais tarde.

Infelizmente, a participação da sociedade fluminense tem se restringido ao momento do voto, como se a partir daquele momento, optando por um candidato e por sua plataforma política, nós estivéssemos isentos de responsabilidade no processo. Esquecemos que a Constituição Federal sabiamente ensina que a segurança pública é dever do estado, porém é responsabilidade de todos.

Portanto, ouso propor que esse novo caminho, mais viável e rápido, para que comecemos a reverter esse caos, o engajamento da sociedade fluminense na gestão da segurança pública numa mobilização social efetiva, que vá muito além da participação nos Conselhos Comunitários de Segurança, que sem qualquer sombra de dúvida, são muito relevantes, porém precisamos muito mais do que isso, diante da gravidade do quadro atual. O caso é de vida e de morte.

O cidadão precisa exercer um verdadeiro controle externo da atividade policial e deve conhecer a “política de segurança pública” implantada no estado, bem como a forma como está sendo gasto o dinheiro público nessa área de vital importância.

Enquanto a sociedade fluminense não se engajar numa verdadeira mobilização cívica, nunca conseguirá receber os serviços públicos com a qualidade que precisa e que merece, como patrocinadora do estado.

“Juntos Somos Fortes”, expressão da mobilização cívica dos Policiais Militares e dos Bombeiros Militares que lutam por salários dignos e por adequadas condições de trabalho, deve ser um lema social. Juntos nós podemos começar a diminuir o nosso medo, construindo uma segurança pública de qualidade”.

O modelo estrutural e conjuntural atualmente adotado no Estado do Rio de Janeiro se mostra ineficiente e já foi experimentado em diferentes governos, nunca tendo alcançado os resultados necessários. O foco tem que ser o resultado, essa é a regra básica. O modelo que não está dando certo, precisa ser alterado, caso contrário, nós insistiremos no erro, o que ofende a inteligência mediana.

No aspecto estrutural, por exemplo, criar as Secretarias Estaduais da Polícia Militar e da Polícia Civil, em substituição à Secretaria Estadual de Segurança, permitirá economia de recursos humanos e materiais, além de uma maior integração entre as instituições policiais, o primeiro passo na busca de uma maior eficiência. Na realidade, a proposta é eliminar esse estágio intermediário que tem como função coordenar a Polícia Militar e a Polícia Civil, o que é plenamente substituível pela integração.

No tocante à conjuntura, valorizar os policiais é indispensável para o sucesso de qualquer política de segurança pública e isso nunca foi tentado. Um policial militar não pode ganhar menos de R$ 30,00 (trinta reais) por dia para arriscar a sua vida em defesa da sociedade. Isso é um absurdo! Nunca deixaremos esse momento de insegurança enquanto os policiais receberem salários famélicos, que os obrigam a buscar o segundo emprego, por uma questão de sobrevivência com um mínimo de dignidade.

O policial, ao utilizar como ferramenta de trabalho uma arma de guerra, o fuzil, deveria, em tese, reduzir a possibilidade de erro, principalmente em razão do alcance e da letalidade desse armamento que é utilizado nas ruas do Rio de Janeiro. Contudo, o segundo emprego, o famigerado “bico”, desgasta fisicamente o policial, que emocionalmente já sofre com o estresse profissional, o que aumenta em muito a possibilidade de erro. Cansado e estressado o policial é empregado diuturnamente no confronto armado, usando a sua “arma de guerra”.

Por outro lado, a tática repressiva de enfrentamento armado aos “vendedores de drogas”, transformada em “política de segurança pública”, novamente está sendo repetida o que potencializa o uso de armas de fogo tanto por policiais quanto por traficantes.

Numa primeira vista, estatisticamente, em alguns casos, ela produz resultados incontestáveis, como o número de armas e a quantidade de drogas apreendidas, assim como o número de criminosos presos ou mortos em confronto.

Porém, infelizmente, gera outros dados estatísticos macabros, como a morte de policiais e a morte de cidadãos inocentes, moradores de comunidades carentes, vítimas das denominadas “balas perdidas”, sem contar os danos causados ao patrimônio público e particular.

Urge, portanto, que seja estabelecida, com a participação da sociedade, uma nova política de segurança pública, inclusive com as ações preventivas indispensáveis, para substituir essa “tática de confronto”, a qual deve também ser empregada, porém de forma pontual e precedida de rigoroso planejamento, que minimize o risco de morte.

Na verdade, para construir um futuro melhor com maior segurança, a sociedade fluminense precisa acordar e participar da reconstrução do atual modelo de segurança pública.

JUNTOS SOMOS FORTES!



3º ARTIGO
Raízes da Impunidade: A Baixa Taxa de Elucidação dos Delitos


Major de Polícia
Wanderby Braga de Medeiros

Hoje, aparentemente mais do que ontem, tem sido comum nos depararmos com grandes operações ostensivas levadas a efeito por parte de servidores públicos da Polícia Civil do RJ.

Tais operações, em que participam funcionários de diversas delegacias "especializadas", paramentados das mais variadas formas, têm logrado cobertura quase cinematográfica da mídia fluminense. Helicópteros, homens de preto, roupas camufladas, coletes os mais variados, toucas ninja, etc, têm feito parte do cotidiano das ações da polícia investigativa do RJ.

Como resultados de tais operações, temos visto apreensões de armas, drogas e mortes, não poucas mortes e não apenas de supostos criminosos, mas também de inocentes, mesmo crianças.

Diante de tal quadro e de seu potencial lesivo, urge que façamos algumas reflexões.

De quem é a atribuição para a diferenciação entre o caráter suposto e expresso de tais criminosos vitimados? E de quem é a competência para a individualização de condutas delituosas eventualmente praticadas pela própria polícia no curso de tais operações?

A competência é da polícia investigativa do RJ. Da mesma que, travestida de "Rambo" e leniente em relação aos seus próprios abusos e desmandos, parece estar sendo direcionada a tudo, menos a sua atribuição precípua, que é investigar e elucidar delitos.

E por que elucidar delitos é tão importante?

Por que impunidade é força motora de delitos. Embora seja fato que a mera presença ostensiva da polícia pode deslocar determinadas práticas criminosas, somente a (quase) certeza de aplicação da sanção penal (seja ela qual for) poderá refletir a máxima de que "o crime não compensa".

Mas, a propósito, como anda a polícia investigativa fluminense no quesito "elucidação"?

Estranhamente, as estatísticas oficiais da segurança pública do RJ, disponíveis a partir do sítio de seu Instituto de Segurança Pública (www.isp.rj.gov.br), não fazem menção a tal quesito nem mesmo quando aborda a denominada "produção policial".

No único momento em que foram divulgadas (Boletim Mensal de Monitoramento e Análise, ano I, nº. 02, julho/2003), as taxas de elucidação de delitos ostentadas pela Polícia Civil (delegacias legais) eram as seguintes:

Roubo a banco - 2%
Roubo de carga - 5,4%
Roubo em estabelecimento comercial - 3,7
Roubo a transeunte - 3%
Roubo em residência - 4,5%
Roubo em coletivo - 3,9%
Homicídios dolosos - 2,7%

Parece pouco? É menos ainda, uma vez que contemplam até mesmo as prisões em flagrante que, convenhamos, tendem a ser muito mais numerosas tendo por origem policiais militares do que civis.

Talvez realmente não seja de bom alvitre - "politicamente" falando - tornar a realizar a divulgação de tais taxas. Afinal, em o fazendo, a gestão da segurança pública estaria fomentando a idéia de que tal quesito tem importância no contexto de sua pasta.

Buscando dados alusivos a realidades distintas, em que talvez investigadores sejam menos ostensivos e mais eficazes, temos taxas também bastante distintas e, não por acaso, índices criminais menos desfavoráveis à população.

Segundo o sociólogo Ignacio Cano, países como Inglaterra, Austrália e os da Escandinávia têm uma taxa de elucidação de homicídios entre 50% e 75%.

No Japão, as taxas chegam a impressionantes 90%. Suas taxas de homicídios estão entre as taxas menores do mundo.

Em Curitiba, PR, no ano de 2006, 40% dos homicídios registrados na delegacia especializada foram elucidados. No mesmo ano, a média mensal de registros do RJ quase atingiu a totalidade do ano no PR.

Nos Estados Unidos da América, 65% dos homicidas são levados a julgamento.

De acordo com artigo publicado na Folha de São Paulo em 03/12/2006, de autoria de José Alexandre Scheinkman, estimativas do efeito de punições na taxa de criminalidade indicam que se a polícia fluminense atingisse a metade da eficácia que a polícia americana exibe na resolução de crimes, os homicídios no Estado cairiam quase 40%.

No RJ, descontando-se as prisões em flagrante delito, as taxas de elucidação de homicídios caem para impressionantes 0,7%. Significa dizer que a cada cem homicídios praticados, nem mesmo um chega a ser elucidado.

Verificando que temos mais de quinhentos homicídios por mês em média no estado, chegamos à calamitosa conclusão de que nem mesmo quatro chegam a ser elucidados.

Começa, então, a fazer sentido, a sensação de que a vida humana vale quase nada no Rio de Janeiro, onde a polícia judiciária é ostensiva, possui letalidade singular, utiliza "fardas", luta com unhas e dentes para impedir a autonomia da perícia criminal e o encaminhamento de pequenos delitos diretamente ao poder judiciário por parte dos policiais militares, e ostenta com orgulho esquadrões e "tropas" de elite; onde a investigação criminal está falida.

No Rio de Janeiro, em que a atuação dos dirigentes da polícia investigativa transita entre o "saber jurídico" e as "táticas de guerra", a impunidade, fruto da absoluta ineficácia do sistema de investigação criminal, prospera.

No Rio de Janeiro o crime compensa.