Ano I – nº. 7, 13 de outubro de 2008
Uma nova Polícia, feita por Policiais Cidadãos.
OS BASTIDORES DA SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO
Sumário:
Drogas: Uma guerra perdida.
1º Artigo: "Por uma Política de Libertação”.
2º Artigo: O papel dos municípios na política de segurança.
3º Artigo: Policial – Militar, uma Vítima – Algoz?
Novidade:
O que o povo espera do futuro prefeito na segurança pública.
Drogas: Uma guerra perdida.
Fracasso da política global de combate às drogas, motiva debate internacional sobre o tema e fortalece teses de regulação e redução dos danos (Extraído na Íntegra do Jornal O Globo, O MUNDO, pág. 40, Domingo, 14 de setembro de 2008).
Nos anos 70, os EUA declararam guerra às drogas. Em 1998, a ONU preconizou “um mundo livre de drogas”.
Desde então, o consumo de maconha e cocaína na América Latina mais que triplicou.
O plantio de coca aumentou de 160 mil hectares a mais de 200 mil e a produção cresceu na ordem de 20%, apesar das políticas de erradicação. As margens de lucro superam os prejuízos.
O crime organizado associados às drogas continua a se expandir e a se sofisticar, corrompendo os poderes e ameaçando a democracia.
O total de usuários regulares de drogas no mundo é estimado em 200 milhões de pessoas.
A maconha é a droga mais consumida (160 milhões), embora o percentual de uso problemático seja reduzido. Anfetaminas e ecstasy já superam cocaína e heroína.
Investe-se muito mais em repressão ao consumo e encarceramento que em prevenção tratamento, redução de demanda e campanhas educativas.
Com 5% da população mundial, os EUA têm 25% da população prisional do planeta, sendo que meio milhão (1/4) relacionado a drogas.
Ao mesmo tempo, os EUA atingiram a auto-suficiência em produção de maconha para o uso doméstico.
A política proibicionista, dificultou a abordagem na escola, na igreja e na família, penalizando as classes pobres.
A Europa vem priorizando redução de danos, descriminalização do uso, distribuição de seringas, tratamento obrigatório de viciados e criação de penas alternativas.
Em países da América Latina como Brasil e Colômbia, uso e posse de pequenas quantidades vêm sendo despenalizados.
Cresce o pensamento com foco nos direitos humanos, no respeito a culturas ancestrais, aos pequenos agricultores, a modos de cultivo alternativos e programas de reinserção.
Teóricos americanos ultraliberais defendem a legalização de produção, distribuição, venda e uso de todas as drogas.
Os mais moderados defendem a regulamentação da maconha e controle semelhante ao hoje exercido, com sucesso, sobre o uso do álcool e do tabaco.
Teses regulatórias prevêem, através de impostos, migração do capital da droga para campanhas educativas, implemento do controle, inteligência, pesquisa e saúde pública.
Na Califórnia a produção e a distribuição de maconha para uso médico já é taxada.
A proibição do álcool entre 1919 e 1933 nos EUA aumentou o consumo e gerou crime e violência, fazendo a glória de vultos com Al Capone. Constado o fracasso, a emenda foi revogada.
Sete vezes maior que o da maconha, o uso do tabaco cai e o fumo se torna anti-social sem necessidade de repressão ou encarceramento.
Fontes: Transational Institute (TNI); Assembléia Especial das Nações Unidas, 1998 (UNGASS); World Drug Report / (UNDOC), 2008; Common Sense for Drug Policy Alliance; Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia; Office Off National Drug Control Policy (USA).
1º Artigo
"Por uma Política de Libertação”
Antônio Carlos Costa
Presidente do Rio de Paz
Fala-se muito sobre a chamada política de confronto do governo do estado do Rio de Janeiro. Após um ano e meio de muito confronto, marcado por baixas de civis inocentes e policiais, sem conseqüência significativa alguma para a diminuição do número de homicídios, que deve chegar em dezembro à marca de 21.000 em dois anos – se contarmos com homicídio doloso, encontro de cadáver, auto de resistência, latrocínio, pessoas que foram assassinadas e que se encontram na categoria “desaparecidos” e policiais mortos – , a população começa a perceber que seu apoio inicial ao confronto estava equivocado.
Um dos dramas da vida reside no fato de que em muitas ocasiões há um lado dialético na verdade. Os dois lados de uma mesma moeda que precisam ser levados em consideração. Uma sutileza que passa despercebida pelos que se recusam a pensar de modo duplo.
C. S. Lewis, famoso autor das "Crônicas de Nárnia", costumava dizer que o erro vem aos pares. Extremos opostos que se nos apresentam, forçando-nos a fazer uma escolha entre ambos, quando na verdade a escolha de ambos os lados representará a opção pela meia verdade.
Como diz o famoso médico e teólogo galês, Martin Lloyd-Jones: “Não há nada pior na busca pela verdade do que elevarmos à condição de verdade completa um aspecto da verdade”. Em suma, pessoas podem estar numa discussão apresentando pontos de vista diferentes sobre um determinado tema e ambas estarem erradas.
Só um completo desconhecedor da natureza humana para eliminar o confronto da política de segurança pública. Sendo o homem quem é o estado tem que se fazer valer do monopólio do uso da força. Nossa tendência ao mal tem que ser refreada ou pela força da persuasão racional ou pelo poder coercitivo do estado.
A idéia de eliminarmos a responsabilidade humana em razão do histórico de miséria da vida do malfeitor, fará com que admitamos como normais crimes que nenhuma miséria é capaz de justificar. Contudo, a meta do combate à violência mediante o confronto pode ser alcançada de modos diferentes, adaptando os meios aos fins estabelecidos e às circunstâncias históricas.
A atual política de segurança do estado do Rio de Janeiro está equivocada por vários motivos. Os números da violência estão aí para mostrar que houve algum equivoco e que uma correção de rumo urgente precisa ser feita. Senão vejamos.
Há um erro estratégico, incompreensível mesmo para um leigo, de focar o combate ao tráfico e ao uso ilegal de armas na comunidade pobre e não no entorno da cidade do Rio de Janeiro. Sabe-se que essas drogas vêm pelas nossas estradas. Por que não há uma investigação séria e eficaz nas vias de acesso da cidade? Por que transferir o trabalho de apreensão para as comunidades pobres apenas?
A idéia de que há um preço de vidas a ser pago pela população a fim de que a violência seja reduzida é moralmente incorreta e unilateral. Esse preço está sendo pago pelos pobres e não pela classe média.
Quem tem morrido em troca de tiros entre policiais e traficantes é gente como a menina Fabiana da Mangueira e o menino Ramon de Guadalupe, e não as crianças do Novo Leblon e do Mandala na Barra da Tijuca.
Não se combate a violência com o foco mais voltado para a morte do malfeitor do que a proteção da vítima. É imoral trocar tiro com armamento que fura parede de alvenaria sabendo que há criança dentro das casas que se situam nas regiões onde ocorrem os conflitos.
A invasão sem a intenção de ocupar as áreas dominadas por narcotraficantes representa um desembarque da Normandia pela metade. A um custo altíssimo de vidas entra-se numa região, matam-se dezenas, traumatiza-se crianças, para no minuto seguinte voltar-se para batalhões e delegacias, deixando a mesmíssima área devastada totalmente desguarnecida.
Um observador estrangeiro atento será levado a pensar que ou enlouquecemos, ou perdemos o senso de valor da vida humana, ou somos um povo atrasado sob todos os pontos de vista. Precisamos de uma política de libertação.
O estado precisa fazer com a população pobre o que o exército colombiano fez com a ex-refém das Farc, Ingrid Betancourt: “Somos do exército da Colômbia, a senhora está livre”. A falta de uma perspectiva de ocupação tem levado os próprios integrantes das polícias à percepção frustrante de que estão “enxugando gelo”. Olha, vi gente graúda da nossa segurança pública expressando para mim essa semana essa terrível frustração.
A morte de garotos envolvidos com o tráfico sem a presença definitiva do estado em áreas dominadas pelo crime e a criação de condição para a chegada de políticas públicas nas comunidades pobres, é outro aspecto desse desperdício de tempo, recursos e vida.
Sabe-se que para cada jovem morto há uma fila indiana de reservistas do crime prontos para substituir os que pereceram. Rapazes com uma demanda de auto-aceitação imensa. Sabedores do fato de que com um fuzil na mão vão poder levar as meninas para a cama, ter o destino de vidas humanas em suas mãos e comprar os bonés, tênis e roupas de grifes famosas.
Tudo isso num contexto de ausência completa de uma referência paterna, colapso da experiência familiar, perda de valores, pobreza e evasão escolar. Sem o estado presente e oferecendo condições dignas de vida para esses jovens, nós vamos entrar para a história como cidadãos do estado que mais matou e menos realizou para a promoção da vida e paz.
Como esperamos vencer essa crise terrível, a maior que a minha geração enfrentou, com a condição de penúria em que se encontra a nossa polícia? Nossa polícia trabalha em circunstância desumana. Os policiais que tombaram na proteção dos moradores da Fonte da Saudade ganhavam menos do que o custo fixo de cada filha e filho das famílias para as quais ofereciam segurança.
Como pagar tão mal a homens que exercem função social de tamanha importância e que correm risco de vida tamanhos no exercício de sua profissão? Essa polícia carece de melhores salários. Soldo digno de atrair os melhores jovens da nossa sociedade para o exercício do ofício de policial. Essa polícia carece uma melhor qualificação.
Não se pode botar uma arma na mão de um homem, dizer que ele tem o direito de usá-la com base em um pacto social que envolve o consentimento de milhões de seres humanos, e não prepará-lo para tarefa que envolve vida e morte. Essa polícia carece de homens que saibam comandar e inflamar seus comandados com altos ideais de serviço ao próximo.
Tudo isso depende de investimento. Essa semana soube através de gente importante da área da segurança pública do nosso estado que o Rio de Janeiro precisa de mais 10.000 policiais para um policiamento ostensivo à altura das demandas do estado. Sabe-se também, conforme acabei de mencionar, que o salário do policial deve ser aumentado.
Perguntei: “Mas, porque esse investimento não é feito?” Em tom que me pareceu sincero, porém tomado de frustração ouvi meu interlocutor dizer: “O estado do Rio de Janeiro não tem dinheiro”. Pensei: “Meu Deus, essa gente tinha que vir a público e admitir isso. A população tem o direito de saber se o estado tem condição ou não de oferecer segurança para os seus cidadãos”. Porque das duas uma: ou vamos embora daqui por causa do medo, ou nos mobilizamos para salvar o Rio de Janeiro por causa do amor.
Se assim é, o governo federal peca ao deixar o segundo estado em arrecadação da federação sob um massacre sistemático de vidas humanas, não oferecendo recursos para que os homens que estão à frente da secretaria de segurança pública possam trabalhar.
Sou um leigo sobre segurança pública. No início do ano passado eu não sabia a diferença entre Polícia Civil e Militar. Não sabia que a primeira é responsável pelo serviço investigativo (no Rio de Janeiro são elucidados menos de 2% da autoria de homicídio doloso) e a segunda pelo policiamento ostensivo. Mas, venho de dias nos quais entrevistei todo mundo.
Falei com coronéis da PM, parente de vítima, jornalistas, pesquisadores, presidente do ISP, secretário de segurança e o próprio governador. Cheguei a essas conclusões. Gostaria de saber se estou errado, se sou alarmista ou ingênuo. Aguardo convencimento racional do meu possível erro de avaliação.
Nós só não podemos fazer o que é tão próprio do brasileiro, deixar para o amanhã o que devemos fazer hoje. Não há mais espaço para procrastinação. Não podemos decidir não decidir, permitir que a maldade dos perversos seja reforçada pela fraqueza dos virtuosos, tornando-nos assim cúmplices de um genocídio.
A hora de agirmos com melhor senso é agora, especialmente quando tomamos conhecimento do fato de que pode ser que um terceiro monstro esteja para nascer na nossa cidade, o pior de todos. Permitimos o narcotráfico e a milícia, e, agora, surge no cenário o envolvimento com o crime baseado em ideologia de libertação dos oprimidos dos centros urbanos. Imagine marginais treinados para infernizar a cidade e julgando com isso que estão salvando os pobres.
Ainda é tempo. Houve povos que enfrentaram problemas mais graves dos que os nossos e os superaram. Nossa geração pode vencer essa batalha da violência. Mas, para isso precisamos trocar a idéia de confronto pela idéia de libertação. E isso mediante a união de todos nós que amamos e nos orgulhamos do estado maravilhoso que Deus nos deu para habitar em paz.
2º Artigo
O papel dos municípios na política de segurança
Jacqueline Muniz
Belo Horizonte - 2000.
Tradicionalmente, os problemas relacionados à segurança pública no Brasil têm sido enquadrados ora como uma questão de “soberania nacional” e “segurança interna”, ora como um “assunto de competência exclusiva das polícias”.
Em ambos os enfoques privilegiam-se e reivindicam-se, unicamente, os recursos e as intervenções provenientes das esferas federal e estadual, uma vez que são estas as instâncias responsáveis pelas forças armadas, pelas polícias, pelo sistema criminal, etc.
Note-se, que este tipo de mentalidade restritiva encontra-se de tal modo enraizada entre nós, que freqüentemente subestimamos a importância estratégica do poder municipal na produção de “segurança pública”. Ainda hoje é comum ouvir que a “prefeitura pouco pode fazer porque não controla as polícias” ou que a "constituição de 1988 reserva aos estados a responsabilidade exclusiva de prover segurança aos cidadãos".
Em verdade, estas considerações reforçam uma perspectiva ultrapassada que se mostra incapaz de atender aos desafios colocados pelo provimento de uma ordem pública democrática e contemporânea.
De fato, o desconhecimento sobre o papel decisivo dos municípios nas políticas públicas de segurança no Brasil, tem comprometido, de forma substantiva, os esforços de se construir e enraizar políticas e programas tecnicamente adequados e conseqüentes no âmbito da segurança pública. Idéias criativas e experiências bem sucedidas como, por exemplo, os projetos de polícia comunitária, têm enfrentado inúmeros obstáculos para a sua institucionalização.
E, sem exagero, pode-se dizer que boa parte dessas dificuldades está relacionada ao distanciamento e, até mesmo, à indiferença do poder local. As polícias, que possuem um papel executivo e direto na gestão da segurança pública, são as agências públicas que mais se ressentem da ausência de uma ação articulada com as prefeituras.
Conforme demonstram diversos estudos nacionais e internacionais, a ausência ou a fragilidade de interações regulares entre a administração municipal e as polícias, é um dos principais fatores que contribuem para limitar a eficácia, eficiência e efetividade destas últimas.
Não é demais salientar que as intervenções policiais preventivas, dissuasivas e repressivas implementadas de forma exclusiva e, por conseguinte, dissociadas das políticas urbanas desenhadas pelos municípios, tem ajudado a produzir toda sorte de desperdícios no emprego diuturno dos escassos recursos policiais.
Afinal, por mais e melhor que as polícias estaduais possam fazer, elas sozinhas são, por definição, incapazes de responder ás demandas por segurança experimentada nos centros urbanos. Tal limitação resulta da evidência de que nem todas as questões de segurança pública são problemas propriamente policiais. Ao contrário, a oferta de uma segurança pública democrática que atenda aos imperativos de um mercado da cidadania em crescente expansão, ultrapassa a esfera de ação exclusiva das organizações policiais, requerendo a incorporação de outros atores tão fundamentais quanto os meios de força comedida.
Cabe mencionar, que parte expressiva dos problemas que alimentam a sensação generalizada de insegurança e propiciam o agravamento do temor coletivo reporta-se a fatos difusos que não necessariamente podem ser enquadrados como atos criminosos propriamente ditos. Mas, que se não forem devidamente trabalhados por outras agências além das polícias, podem estimular a ocorrência de práticas delituosas futuras e o recurso individual à violência como uma forma de resolução de problemas.
Refiro-me, sobretudo, aos conflitos, desordens, incivilidades e litígios experimentados nos espaços públicos que desembocam, quase que exclusivamente, nos balcões das delegacias e no atendimento emergencial realizado pelas PMs. Os policiais civis e militares de várias polícias brasileiras, orientados pelos seus conhecimentos práticos, sabem disso.
Expressões cotidianas tais como "a polícia não é poste de luz", "a polícia não é cerca", "o policial é um faz tudo" ou “sempre acaba sobrando para a polícia", usualmente empregadas pelos profissionais da ponta da linha, indicam uma crítica às mentalidades e convicções do passado que merecem ser discutidas, desmistificadas, em nome de uma perspectiva que efetivamente considere as formas pelos quais os problemas da insegurança são vividos pelos cidadãos.
Ora, se os cidadãos vivem nas cidades, ou melhor, em algum bairro ou em alguma comunidade, então as questões associadas à insegurança só podem ser também experimentadas e resolvidas no âmbito das localidades. Por conta desta constatação irrefutável, parece não fazer qualquer sentido buscar mascarar ou reduzir a responsabilidade do poder local na co-gestão da segurança pública, utilizando-se como recurso retórico o apego formal ao desenho político-administrativo vigente.
Não se trata aqui de defender a municipalização das polícias estaduais. Mas, antes, de se procurar superar entraves oriundos de convicções e doutrinas inadequadas á realidade contemporânea da segurança pública.
Creio que hoje estamos vivendo um momento rico no que diz respeito à superação de visões arcaicas e amadoras de enfrentamento da crise da segurança pública. Intervenções desconexas, isoladas, espetaculares e superficiais, ainda que bem intencionadas, revelaram-se fracassadas e onerosas. Com o tempo, elas demonstraram sua incapacidade de produzir respostas consistentes e estáveis já não foram mais além do que tentar "apagar incêndios" e "enxugar gelo".
Se isto se impõe como uma aguda evidência, é preciso caminhar rumo uma visão sistêmica, integrada e aberta da problemática da segurança pública que esteja realmente em sintonia com a natureza, diversidade e intensidade dos problemas de segurança vividos nas ruas.
Uma concepção mais realista e sensata da segurança pública reconhece a necessidade de se ultrapassar o campo de atuação exclusiva das forças policiais e de outros órgãos do sistema criminal, através da incorporação na gestão da segurança pública das comunidades e de outras agências públicas e civis prestadoras de serviços essenciais à população.
Uma vez que o provimento eficaz de segurança pública depende sobremaneira de variáveis extrapoliciais, tais como o ambiente comunitário, os equipamentos coletivos, a infra-estrutura social e urbana, os serviços de utilidade pública, etc., não se pode prescindir de se estabelecer instâncias efetivas de cooperação e participação sobretudo com a administração municipal.
Se, por um lado, as agências policiais pertencem aos governos estaduais, por outro, uma parte expressiva dos instrumentos úteis e indispensáveis ao provimento de segurança pública está sob o controle do município. A título de ilustração cabe mencionar, entre outros, a manutenção e ampliação dos equipamentos coletivos, o ordenamento e fiscalização da ocupação do solo urbano, a coleta regular de lixo, iluminação e manutenção dos espaços públicos, o controle e fiscalização do trânsito, obras de saneamento básico, fiscalização dos transportes coletivos, a melhoria da malha urbana, a expedição de alvarás e a fiscalização dos espaços coletivos de lazer, etc.
Particularmente no campo da prevenção primária - ainda muito pouco explorada no Brasil -, os municípios possuem um papel decisivo. Há muito para se fazer. Suas políticas urbanas e sociais constituem a infra-estrutura da segurança pública as quais, por sua vez, operam como medidas auxiliares e complementares às ações de polícia.
Como se podem perceber os municípios possuem um vasto campo de atuação que não se restringe à criação das guardas municipais. Ainda que pareça repetitivo, vale insistir que fatos urbanos corriqueiros como a falta de iluminação, a acumulação de lixo, o caos no trânsito, a má conservação dos espaços de lazer e demais locais de uso comum, têm uma significativa relação com o “varejo” do crime e seu adensamento em certas regiões da cidade: os assaltos, furtos, conflitos e distúrbios que ocorrem nos espaços coletivos não são simples produtos da “crescente audácia dos bandidos”, da “falta de policiamento nas ruas” e de doutrinas e métodos policiais arcaicos. São, ainda, o resultado do abandono do poder público e da sua incipiente interlocução com a sociedade civil, sobretudo no que se refere à administração dos bens urbanos.
A esta altura parece evidente que a administração municipal emerge como um nexo essencial na orquestração das comunidades com as atividades governamentais estaduais e federais voltadas para a gestão democrática da ordem pública. É, pois, o Município que possui a responsabilidade mais direta pela qualidade de vida da população em seus
aspectos mais básicos. É, portanto, a Prefeitura que detém as ferramentas e órgãos de serviços públicos mais próximos à vida cotidiana das pessoas. Se isto procede, parece inadiável que o poder local se inscreva como um parceiro na tarefa de construção de uma administração estratégica da ordem pública.
Publicado em Segurança Pública: Resultados das Ações do Movimento pela Segurança e Vida. Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2000.
3º Artigo
Policial – Militar, uma Vítima – Algoz?
Antonio Carlos Carballo Blanco
Tenente-Coronel de Polícia
Não raro, o policial militar do Rio de Janeiro é visto como um agente do Estado arbitrário e violento. Não obstante, no caso particular da sociedade fluminense, algumas dessas percepções são atenuadas quando o destinatário da ação trata-se do indivíduo infrator da Lei ou, pelo menos, suspeito de tê-la infringido, geralmente pobre, negro e favelado, ou pertencente a minorias, segmentos ou grupos sociais cada vez mais marginalizados.
Algumas pessoas, intrinsecamente, percebem o policial como sendo o agente do Estado que detém uma identidade profissional semelhante à figura do que seria uma espécie de “gari social”. Aquele que age com a responsabilidade funcional de limpar a escória humana do convívio social (1).
Emerge dessa triste realidade a necessidade de se pensar o modelo institucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e a sua relação como os seus agentes.
Salvo engano, nesse contexto, seria bastante importante, conveniente e oportuno questionar em que medida o policial – militar do Rio de Janeiro é vítima e, ao mesmo tempo, algoz das ações arbitrárias e violentas praticadas.
Essa mesma dramaticidade é regularmente reconhecida e reproduzida no discurso bélico da ação policial, legitimado por expectativas e demandas reacionárias da sociedade que, assim como a administração policial, privilegia a idéia de força, sob a qual a idéia de serviço policial deve estar inserida, sempre num segundo plano.
Nesse sentido, talvez prevaleça a tese de que a sociedade e a própria instituição policial, ambas compreendidas como expressão política do poder, consinta de forma não manifesta a ação arbitrária e violenta da Polícia.
São traços culturais que confirmam a relação corrupta das instituições públicas, da sociedade como um todo, com os valores democráticos de uma sociedade que se pretende igualitária. Determinam, portanto, a prática política de governo e também ajudam a consolidar a cultura organizacional das instituições policiais e suas dinâmicas despóticas, internas e externas.
Destarte, grosso modo, poder-se-ia considerar que esse tipo de “consentimento latente”, permeado no imaginário coletivo da sociedade e das instituições policiais fluminenses, legitima a ação arbitrária e violenta da Polícia, o que, por si só, suscita outras indagações derivadas.
Sobre a construção do modelo do policial militar que é vítima-algoz faz-se necessário um exercício preliminar de elucubração para tentar delinear alguns aspectos e fatores substantivos que concorrem para a sua determinação.
Empiricamente, é razoável supor que todo o conjunto das teorias científicas e práticas aprendidas durante o período da formação e do treinamento policial estão em perfeita consonância com os valores que regem uma sociedade democrática.
Contudo, também é razoável supor que existe uma força superior, permanentemente inscrita no âmago das relações institucionais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro com os seus agentes, que destaca a importância da cultura organizacional intrínseca à Corporação, no ser e no fazer “polícia”, que desvirtua completamente a teoria da práxis policial.
Este talvez seja o segundo fator ou elemento concorrente que caracteriza o modelo da vítima – algoz. O primeiro como dito anteriormente está presente na própria sociedade na forma de uma espécie de “consentimento latente” para o exercício de um mandato policial atípico no âmbito do Estado democrático.
Atualmente, uma outra questão bastante recorrente, nos leva a refletir sobre qual é a real dimensão do poder de influência da instituição policial, enquanto instância de decisões políticas, que são particularmente dirigidas com vistas à definição do papel do policial enquanto servidor público. Trata-se, pois, de inferir “tão somente” quais são as possíveis causas e os supostos efeitos que ajudam a reproduzir o padrão do policial – militar, vítima – algoz.
Existe um universo de conjecturas bastante razoáveis que podem contribuir para identificar expressões despóticas da instituição policial que incide diretamente sobre os policiais e, via de conseqüência, sobre a população destinatária de seus serviços, a saber: a existência de um regulamento disciplinar anacrônico; o modelo mecanicista de administração; a existência de círculos dentro das escalas e estruturas hierárquicas da Polícia Militar; o preconceito e a descriminação que se impõe pela simples razão de existir de tais círculos; as péssimas condições de trabalho e salariais; a privatização dos serviços de segurança (2), a corrupção sistêmica presente nas estruturas de poder dos órgãos de Estado, etc...
Todos esses aspectos e fatores que podem ou não concorrer para a constituição do modelo policial – militar vítima – algoz merecem ser estudados com a devida profundidade. Contudo, talvez seja interessante sublinhar alguns indicadores que podem ajudar a melhor compreender a necessidade em se estabelecer esse modelo:
O policial – militar vítima: no período compreendido entre o ano de 1995 e junho de 2005, 8.473 policiais – militares fluminenses foram mortos e feridos em razão de ações violentas, em distintas situações de serviço e de folga (3).
Desse universo, 1.552 foram mortos e 6.921 foram feridos. Do total de mortos e feridos, 31,7% dos casos refere-se a causas decorrentes de acidentes de trânsito. Dessa fração 63% dos casos ocorreram em situação de folga. Mais de 50% dos casos está relacionado com causas associadas aos desdobramentos diversos resultantes de ações criminosas.
No período compreendido entre 2005 e 17 de julho de 2007, 2.000 policiais – militares fluminenses foram mortos e feridos em razão de ações violentas, em distintas situações de serviço e de folga (4).
Desse universo, 334 policiais militares foram mortos e 1.666 foram feridos. Nesse intervalo, considerando o total de policiais militares mortos, 57 foram mortos em situação de confronto armado e 277 em situação de folga. Do total de feridos 820 casos ocorreram em situação de serviço e 850 em situação de folga.
Como se pode depreender dos números acima, a ocorrência de policiais militares mortos e feridos pode ser considerada um caso atípico em face dos padrões internacionais. Os alarmantes números também suscitam, como dito anteriormente, indagações sobre as causas concorrentes e determinantes para configuração desse quadro.
Dentre as possibilidades causais recorrentes que se podem extrair da realidade empírica pode-se destacar: as péssimas condições de trabalho e salariais como indicador original da ausência de uma política de prevenção de acidentes de trabalho e estresse, da falta de equipamentos básicos de proteção e segurança individual, da desvalorização do profissional de segurança pública materializada pelo baixo nível de formação e treinamento e também pela generalização desenfreada da prática do famigerado “bico” e seus efeitos perversos.
O policial – militar algoz: o outro lado da mesma moeda se expressa na letalidade da ação policial corroborada pelo baixíssimo nível de confiança da população na instituição policial e na própria dinâmica do cotidiano urbano caracterizado pela péssima qualidade dos serviços prestados pelos policiais militares.
Resultado de pesquisa inédita, recentemente divulgada pelo Instituto de Segurança Pública (5) informa que menos de 10% das pessoas entrevistadas confiam totalmente nas instituições policiais fluminenses. Os maiores medos da população são: ser vítima de bala perdida (57%); estar no meio de um tiroteio (43,5%); ter a residência assaltada (37,6%); ser assaltado na rua (36,1%); ser assaltado no ônibus (25,9%); ser confundido com bandido pela polícia ou por criminosos rivais (22,4%); ser vítima de agressão sexual (22,2%); ser vítima de seqüestro ou seqüestro-relâmpago (20,9%); ter carro ou motos roubados em assalto (12%); ser vítima de agressão verbal, física ou de extorsão por policiais (8,9%).
Em 2007 foram registrados 1.333 casos de autos de resistência que correspondem a 1.333 civis que morreram pelo fato de terem supostamente reagido à ação policial. Somente nos cinco primeiros meses de 2008, 649 civis foram mortos pela Polícia. Na cidade do Rio de Janeiro, em 2007, 222 pessoas foram vítimas de “bala perdida”, das quais 17 morreram.
Em tese, os indicadores permitem afirmar, preliminarmente, que o policial – militar fluminense, vítima – algoz, é o que mais mata e o que mais morre no mundo. Faz-se urgente, portanto, de fundamental importância, identificar e investigar quais são as expressões político – institucionais (órgãos do estado, órgãos do governo, mídia, etc) mormente não declaradas mas que repercutem sobre as organizações policiais e seus agentes e que se convertem em cultura e prática propiciando e influenciando a repetição de causas intervenientes e de ações na reprodução sistemática desses fenômenos bilaterais de vitimização.
Até a presente data (13 de outubro de 2008), somente no Estado do Rio de Janeiro, mais de 87 policiais militares morreram violentamente.
(1) Blanco, Carballo. A Indústria do Medo: Raízes da Insegurança Pública.
(2) Pesquisa ISER. Informações e Vigilância Epidemiológica da Segurança dos Policiais Militares. Maio, 2006. Foram utilizados dados de 1995 a junho de 2005 obtidos através das seguintes fontes: 1ª Seção do Estado Maior – Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (Boletim Mensal de Monitoramento e Estatística; Lista Diária de Policiais Feridos e Mortos. ISP / SSP / RJ – Efetivos da PM e Características dos PM. IBGE – Populações e DATASUS – Mortalidade (SIM).
(3) Fonte: 1ª Seção do Estado Maior – Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
(4) Pesquisa de Vitimização financiada pela União Européia e pela Secretaria Especial de Direitos Humanos.
(5) A pesquisa envolveu 30 pesquisadores que percorreram 75 mil domicílios e entrevistaram 4.533 pessoas.
Novidade!!!
O que o povo espera do futuro prefeito na segurança pública???